Acontece em São Paulo (16 a 30 de julho de 16) o 2º FESTIVAL INTERNACIONAL DE MÚSICA EXPERIMENTAL, marcado pela diversidade, o festival está distribuído por diversos aparelhos culturais da cidade (Biblioteca Mário de Andrade, Sala Olido, Sesc Consolação, Praça das Artes, etc) e traz para São Paulo grandes expressões da música contemporânea eletroacústica.
O termo música experimental induz a certo erro conceitual, traduz a idéia de que a música dita experimental - se o termo experimento for usado dentro de um viés cientificista – é uma música incompleta, não resolvida, o que é um grande equívoco.
Equívoco porque essa música experimental é um acontecimento que se resolve no instante da sua execução. Penso na música de Patricia Martinez – compositora e artista performática argentina – e em como sua música só pode ser entendida como experimental se com isso queremos dizer uma experiência que o outro experimenta: não é uma música incompleta, ao contrário, em sua música ato e potência são indistintos, e ela se resolve enquanto gesto no tempo-espaço, ali, na nossa frente.
Não se trata, aqui, de uma crítica musical – não sou músico, sou poeta, não possuo os elementos suficientes para fazer uma crítica musical – mas das impressões deixadas pelo impacto profundo que essa música me causou na apresentação de hoje (18/07/2016) na Biblioteca Mário de Andrade. Também não se trata aqui de uma crítica do gosto, terreno já superado. De alguma maneira, posso dizer que esse texto faz parte da experiência sonoro-visual que a música de Patrícia Martinez proporciona: é uma reação, talvez um desabafo, uma transgressão das regras da crítica, quiçá uma ponte até uma experiência visceral.
Pois é disso que se trata na apresentação de Patrícia Martinez: ao fundo, são projetadas imagens diversas – cenas de infância, passeatas, protestos – enquanto no piano preparado Patrícia alterna momentos quase zens com arroubos de pura angústia musical: ela não vem para aliviar nossas feridas, ela vem para compartilhar as suas.
Patrícia faz o piano às vezes de saltério, às vezes de bateria, mas com certeza esse piano – atonal, preparado, experimental – é pura emoção, não a emoção comezinha do dia a dia, mas uma emoção dionisíaca, vibrante, latina.
Essa latinidade de sua apresentação é solar, como são solares os desertos. Há certa experiência latino-americana – histórica, estética – que tem a ver com nossas dores históricas, com a violência de nossa formação, com nossa sensibilidade crescida entre arroubos barrocos e violência racionalizada, não é a alegria de um adorno alegorizado, é o grito indígena traduzido em notas do piano, é a radical experiência da forma que se resolve em gesto, e o gesto se completa em arte total nos moldes do século XXI: música, poesia, vídeo e a expressão corporal, todos no mesmo palco, no mesmo tempo-espaço.
Num dado momento, senti-me como se entrasse num deserto: a música não me conduzia, a música me chamava e cabia a mim me deixar levar: nesse deserto eu sopraria as velas do barco que iria conduzir. Era uma paisagem dura, mas com certeza bela, com essa beleza de faca e duna, própria dos desertos.
Sei que sou por demais poético, mas estou tentando aproximar aquilo que para mim foi uma experiência radical, densa: por um momento uma voz disse dentro de mim: Panta Rei, tudo flui, e de fato a música fluía – tal água escorrendo num labirinto: imagens e sons se completavam sincronicamente, como no momento em que na tela aparece a imagem de um senhor de idade numa manifestação na Argentina, e com uma ferramenta ele bate insistentemente num poste de metal e o piano emula a batida em insistentes notas graves: ambos expressam os acertos e desacertos políticos de nossa história, um passo a frente, dois passos atrás, como nos golpes recentes que aconteceram: Paraguai, Honduras, Brasil...
Vê-se que passo de um tópico a outro, da música à história, e vice-versa: mas é isso que a música de Patrícia é – não se trata de belas-artes nem de distração – a totalidade de sua experiência sonora é justamente porque sua música supera a esquizofrenia das diferenças: natureza X cultura, elevado X popular, histórico X íntimo, sua música é a experiência da totalidade do sujeito.
Era como se enxergasse um álbum de família, com fotos borradas, momentos alegres e tristes, vida e morte, tanto que pensei que a cada apresentação ela dá muito de si, o que não deve ser fácil.
O piano preparado seguiu um longo caminho de Cage para cá, e na música de Patrícia ele não parece preparado, ad hoc: soa quase como outro instrumento ou, melhor dizendo, ela extrai do piano sua sonoridade latente e geralmente não explorada.
Ao final da apresentação consegui conversar com Patrícia: um pouco tímida, simpática e acessível, conversamos sobre sua música, política e... Esqueci de perguntar-lhe quais elementos ela usou no piano, quais objetos/coisas ela usou para preparar o piano. Não tem problema: fica para uma próxima vez.
De qualquer maneira, saí esperançoso: quando se encontra uma arte tão sincera e tão intensa, é sinal de que nem tudo está perdido: no meio do deserto flui música.
GLEDSON SOUSA nasceu em Juazeiro do norte, Ce, Brasil, em 1972. Desde 1991 vive em São Paulo. Escritor e poeta, publicou O AntiMidas – poemas (São Paulo, Ed.Jano,1998 ), Martina – Monólogo De Um Homem Para Sua Alma (São Paulo,2001 Ed. Ibis Vermelho) e O Roubo da Alma - conferência (São Paulo, 2003, ed. Autor e Sind. dos Bancários de São Paulo). Pesquisador da alquimia e das correntes esotéricas, procura a confluência de ambas nas novas formas da psicologia e na filosofia nietzscheana. Em dezembro (2003) lançará O Ovo –Meditações sobre a Semântica do Mundo (Ed. Jano).
gledson.sousa@bol.com.br